sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Relato do humedecimento de vários pedaços de madeira lascada. (tudo isto é verídico e foi presenciado na primeira pessoa)

Chegou o verão.
Claro que para o verão chegar aqui teve que sair de outros sítios, e neste momento há pessoas que se lamentam calorosamente do frio. Mas este relato não é sobre elas.
(este relato é sobre o verão.)
O verão chegou, e com ele chegou também a melancolia do inverno. é uma coisa rara, mas existe.
(este relato é sobre o inverno.)

Lembrar o inverno é recordar a nossa chegada ao chile, em que sair de casa era sinónimo de vestir um gorro, duas luvas (uma para cada mão), um casaco de neve, seis meias (três para cada pé) e, mesmo assim, morrer de frio.
Mas a melancolia não está aqui. a melancolia está na memória dos dias de chuva.
(este relato é sobre a chuva.)

Agora que não chove, dou por mim a pensar saudosamente nas resoluções criativas que o povo chileno criou não só para enfrentar mas também para aproveitar o fenómeno da pluviosidade.
(este relato é sobre o brilhantismo chileno)

Nos dias em que chove, espertos como são, os chilenos (neste caso os chilenos que possuem um estabelecimento comercial) pensam o seguinte:
"vejamos, está a cair água do céu... a rua fica molhada. os clientes andam na rua. os clientes entram na loja vindos da rua. a água que está na rua entra na loja. Caray! daqui a pouco tenho o chão da loja todo molhado... ¿Qué hacer?"

Perante esta situação, um bom chileno, resoluto e inteligente, fruto de um conhecimento que é praticamente inato, nem pensa duas vezes. Pega num saco de serrim e despeja-o todo em frente à porta da sua loja.
O que é que isto adianta?
É dificil enumerar as vantagens. mas tentemos.

Em primeiro lugar imaginem um monte de lascas de madeira, à entrada da loja.
Cada pessoa que entra, com o pé molhado, pisa o serrim. ploft. o serrim, agora húmido, cola-se à sola do sapato. de seguida o cliente faz o seu percurso na loja, sendo que neste processo se vão descolando, ocasional e aleatoriamente, pequenos bocados de uma espécie de bolo de serrim.
(este é o relato do humedecimento de vários pedaços de madeira lascada.)

Mas não se percam na poética desse momento. continuemos...
a seguir entra outro cliente, depois outro, depois um casal, depois um carrinho de bébé, etc.
À medida que se sucedem os clientes, o serrim, inicialmente amarelo claro, vai-se transformando numa papa castanha. uma papa castanha que, incrivelmente, se vai dispersando pela loja, tomando conta dela.

Nesta altura, o serrim, combinado com a chuva, cumpre finalmente o seu desígnio: transformar a loja numa espécie de celeiro.

A loja, antes um ambiente distante, frio, impessoal, transforma-se agora numa acolhedora pocilga, em que cada um deixa, literalmente, a sua marca.

O monte de serrim à entrada não dá espaço para equívocos.
Aqui, a mensagem é clara: "deixe as preocupações lá fora, cá dentro, é hora de chafurdar."
Motivado por esta loja-celeiro, o cliente esquece-se dos preços, olvida-se das marcas. Absorvido pelo caos da imundicie que ajudou a criar, compra tudo sem ver quanto gasta...
(este relato é também uma crítica à perversão capitalista dos lojistas chilenos.)

Claro que para quem nunca presenciou tal coisa, o relato pode não fazer justiça à situação e talvez essas pessoas (vocês) não se sintam minimamente tocadas.
Mas isso não interessa.
(este relato é sobre não querer saber o que as outras pessoas pensam.)

O que interessa mesmo é a lição chilena. E eu não quero saber que explorem as minhas fraquezas e reavivem em mim a liberdade infantil de sentir que posso sujar o que quiser.
Até porque isto não se trata de me sentir criança outra vez. Isto é muito mais.
Sinto que subi um patamar. Sinto que cresci.

De facto, isto é a brincadeira pueril adaptada à minha condição de adulto!
Posso finalmente deixar de lado as mixórdias da chávena de café misturado com açúcar e água! O meu mundo agora é o do serrim e da água da chuva.

O meu universo já não é o da pequena peça de porcelana. O meu universo são todas as lojas de Santiago!

Isto é a sensação de euforia proporcionada por alguém que já foi criança e sabe que o café com açúcar era pouco. Isto é responsabilidade social.
Isto é liberdade, isto é a sensação de poder, isto é a oportunidade de abraçar o presente de braços abertos sem ter que pensar em quem é que vai limpar a mistura nojenta que criei.

Isto, é viver no Chile. Em grande!

1 comentário:

Anónimo disse...

Que se passa neste blog???
Quantas vezes é publicada a mesma msg?
BT